05/09/2018

Artigo: A quem interessa um país sem memória?

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Um povo que não conhece seu passado, que não compreende suas referências e suas origens, perde a chance de reparar seus erros históricos

 

Crédito: Tânia Rego/Agência Brasil
Por Rogério Sottili
Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog

 

Este ano iniciamos as comemorações da Semana da Pátria com uma imagem que ficará marcada na memória de muitos brasileiros: o prédio histórico do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, instituição científica mais antiga do país, tomado pelas chamas. No mesmo ano em que celebramos o bicentenário do museu, assistimos à destruição de seu acervo histórico, arqueológico, antropológico, etnográfico e de história natural, respeitado internacionalmente. Pelas mãos de funcionários, algumas peças foram salvas, mas nada se compara ao acervo original de 20 milhões de itens, fruto de anos de pesquisa. São 200 anos da memória de nosso país que viraram cinzas. Um patrimônio histórico e cultural que pertencia à humanidade.

O caso não é isolado. Em São Paulo, nos últimos anos foram pelo menos quatro grandes acervos impactados por incêndios: o Instituto Butantan em 2010, o Memorial da América Latina em 2013, o Museu da Língua Portuguesa em 2015, e a Cinemateca Brasileira em 2016. Por que tratamos nossos registros históricos com tanto descaso? A quem interessa um país sem memória? Um povo que não conhece seu passado, que não compreende suas referências e suas origens, perde a chance de reparar seus erros históricos e não é capaz de trilhar seu caminho a um futuro de respeito aos direitos humanos e à democracia.

O problema de não cuidarmos, enquanto nação, de nossa memória é que perpetuamos estruturas de violência e opressão. A história do Brasil continua sendo uma história de apagamentos e silenciamentos. O desaparecimento foi a lógica da ditadura militar. Tentaram apagar e silenciar Vladimir Herzog, jornalista morto sob tortura dos agentes do Estado em outubro de 1975. Além de Vlado, são centenas de mortos e desaparecidos políticos entre 1964 e 1985. Se é tempo de celebrar nossa pátria, fazemos questão de lembrar aqueles que lutaram por nossa democracia e foram silenciados. Afinal, a omissão e a falta de reparação também são violências. Seguiremos lembrando daqueles que resistiram. Em 4 de setembro, completamos 28 anos da descoberta das 1049 ossadas da vala de Perus, na zona sul de São Paulo. Em 6 de setembro, 39 anos da volta dos primeiros exilados. E há ainda os mortos e desaparecidos, também políticos, de grupos cuja perseguição não acabou com a ditadura: moradores das periferias, indígenas, LGBTs, negros. Seguiremos lembrando também destes que ainda resistem.

Em tempos como este, é preciso reafirmar que não existe povo sem memória. Quando nos negam o direito de conhecer o passado, nos tiram também a possibilidade futura de transformação e de justiça. A destruição do Museu Nacional não foi um acidente, foi um crime, fruto de uma política deliberada de apagamento de nossa história e de nossa cultura. Só um país sem memória pode seguir homenageando torturadores em ruas e praças públicas – ou ainda manter uma Lei da Anistia que permite a impunidade dos crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado brasileiro. A imagem do Museu Nacional tomado pelas chamas é a cruel fotografia da realidade em que vivemos: a riqueza e a diversidade de nossa cultura, ciência e memória, destruídas pela força bruta do fogo, pela brutalidade do abandono público. É a mais bem acabada obra do descaso com a memória no Brasil.

 

*Artigo publicado originalmente na Carta Capital, na edição online do dia 05 de setembro de 2018.

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